Ponto de vista

Introdução

Atualmente, o mundo experimenta a realidade de uma pandemia causada pela doença COVID-19, que tem revelado a importância do profissional de enfermagem, bem como do seu papel na sociedade e sua atuação como linha de frente no combate ao novo vírus (Oliveira, 2020).

Os profissionais de enfermagem compõem metade da força de trabalho na área da saúde e são responsáveis pela coordenação de equipes de saúde em seus distintos níveis de atenção à saúde (Cassiane et al., 2018).

O relatório Triple Impact of Nursing, fruto da campanha Nursing Now, constatou semelhanças nos desafios dos enfermeiros no mundo e estabeleceu que o reforço da enfermagem e a capacitação dos enfermeiros não só contribuiriam para a melhoria da saúde global, mas também contribuiriam para a melhoria da igualdade de gênero, construindo economias mais sólidas (Salvage, 2018).

Além disso, o documento salientou a imprescindível conduta da enfermagem na agenda global diante às mudanças nos âmbitos demográfico e epidemiológico. Também destacou a carência de diversificadas formas de assistência, políticas e serviços comunitários e domiciliares, recomendando estratégias governamentais e de agências internacionais para enaltecer a profissão, estabelecendo programas para o desenvolvimento de lideranças, tornando-acêntrica nas políticas de saúde (All-Party Parliamentary Group On Global Health, 2018).

Esse reconhecimento proporciona visibilidade à profissão, no entanto, ainda é restrita sob a ótica das atribuições do enfermeiro, muito provavelmente proporcionada pela imagem distorcida da mídia impressa, digital ou televisiva, capaz de gerar e fortalecer preconceitos relacionados às funções do enfermeiro e equipes de enfermagem, causando impacto direto sobre o exercício profissional (Silva et al., 2018).

No campo da aviação, o profissional da enfermagem pode desenvolver atividades em formas distintas, dentre elas, o transporte aeromédico, que consiste em locomover pacientes entre unidades hospitalares por via aérea em aeronaves de asas fixas ou rotativas, sendo o enfermeiro, na companhia de uma equipe multidisciplinar, responsável pelo transporte do paciente, cuidados durante o voo, além da gerência de situações de risco e emergência caso seja necessário, considerando condições ambientais, como altitude elevada e temperatura reduzida. Devido às particularidades potencialmente invasivas à equipe, pacientes e tripulação, o transporte aéreo exige do enfermeiro qualificação para o cumprimento de sua função (Passos et al., 2011).

A aviação facilitou a disseminação de microrganismos no mundo, por meio da permissão de uma pessoa infectada locomover-se ao redor do mundo com certa velocidade favorecendo, desta forma, a transmissão da carga viral e bacteriana a pessoas de diferentes regiões assim como o ocorrido com o coronavírus, que teve como porta de entrada no Brasil o transporte aéreo (Silva et al., 2018).

A primeira infecção humana pelo vírus ocorreu na cidade de Wuhan, província de Hubei, região central da China, em dezembro de 2019. No Brasil, o primeiro caso confirmado ocorreu no mês de fevereiro de 2020, num homem de 61 anos, com histórico de viagem para a Itália poucos dias antes do diagnóstico (Brasil, 2020).

Tendo visto a importância da enfermagem no mundo e sua capacidade de realizar intervenções que previnem intercorrências, promovem saúde e retardam complicações minimizando danos, o enfermeiro pode promover assistência aos passageiros no momento de incidentes durante o voo. Isto posto, este artigo deseja promover uma reflexão sobre os benefícios da presença do enfermeiro como membro integrante da tripulação em voos comerciais.

Metodologia

Trata-se de um artigo de reflexão, que aborda a percepção dos autores sobre o enfermeiro no campo da aviação civil, fora da ocupação dos espaços tradicionais. Para embasamento do tema optou-se pela utilização da revisão de literatura como referencial tendo como critério de inclusão aquelas que contemplassem o tema, em português e inglês, na base de dados BVS, utilizando as palavras-chave: assistência de enfermagem; Covid-19; valorização; autonomia do enfermeiro; transporte aero médico e visibilidade da enfermagem. O período de publicação da literatura analisada compreendeu os anos de 1999 a 2020, totalizando 19 trabalhos selecionados.

Marco referencial

Dentro do leque de atuação, o enfermeiro tem no horizonte o transporte aeromédico, que consiste em transportar um paciente de um ponto a outro, por meio de helicópteros ou aeronaves pressurizadas, atuando em altitudes elevadas, consciente das alterações fisiológicas do corpo humano causadas pela diferença de pressão, prestando assistência às intercorrências relacionadas às condições que o ambiente oferece, a partir de seu conhecimento sobre a aeronave e seus protocolos de segurança de vôo. (Passos et al., 2011).

Ellen Church, primeira comissária de bordo da aviação nos Estados Unidos em 1930, era enfermeira e seu propósito dentro da aeronave inicialmente era cuidar dos passageiros que poderiam apresentar alguma alteração fisiológica decorrente da altitude já que possuía, além da formação em enfermagem, um bom conhecimento sobre a aeronave, inclusive conhecimento para pilotagem, mesmo sem permissão para pilotar aeronaves na época por ser mulher. Ellen Church ainda recrutou mais sete comissárias para treinamento e atuação a bordo (Pimentel, 2006).

O profissional que realiza esse tipo de transporte deve estar habilitado para agir em situações de emergência, ainda que em ambiente pressurizado mecanicamente e com os recursos disponíveis na aeronave, razão pela qual fica responsável por selecionar os materiais que julga necessário carregar consigo, baseado nas evidências que o paciente apresenta e no risco que o ambiente oferece (Scuissiato et al., 2012).

Com a modernização e comercialização dos voos ao longo do tempo, os serviços de bordo, como a oferta de comidas e bebidas foram acrescentadas e, por consequência, a função da enfermeira dentro da aeronave passou a ser vista de outra forma, originando processos de contratação de pessoas leigas para o serviço, já que teriam outras preocupações além da saúde dos passageiros, tais como os protocolos de segurança da aeronave (Pimentel, 2006).

O enfermeiro é capacitado para identificar alterações de saúde, por menor que seja, e sistematizar a prioridade desse indivíduo em desempenho assistencial. Em tempos de pandemia, em que se presencia um vírus com alta taxa de transmissão gerar impacto na saúde ao causar elevado número de mortes, assim colocando o mundo todo em alerta, o olhar clínico da enfermagem consegue identificar sinais para classificar se há risco da pessoa estar infectada e transmitir aos demais, promovendo melhor controle epidemiológico (Braga et al., 2011).

Mediante um passageiro sob efeito de drogas, por exemplo, o enfermeiro poderia contribuir na avaliação para a permissão de seu embarque, uma vez que a presença de um passageiro nestas condições dentro de um avião apresenta risco devido a uma eventual descompressão, além de tornar vulnerável a segurança de toda a tripulação.

Durantes alguns vôos, sobretudo os de longa duração, é possível encontrar algum passageiro que apresente evidências de leve mal-estar até uma condição mais grave. Neste cenário, os comissários de bordo, apesar do treinamento e frequente reciclagem dos conhecimentos, tendem a oferecer um atendimento limitado, que resulta na necessidade de consultar a presença de um profissional médico dentre os presentes para auxílio no atendimento. Além disso, existem doenças transmissíveis e específicas condições de saúde que não são compatíveis com o transporte aéreo, como foi o caso da COVID-19 e, por isso, necessitam de um olhar crítico e treinado para sua identificação.

No controle de endemias, o enfermeiro deve realizar o diagnóstico precoce, instituir o tratamento adequado e imediato e/ou acompanhá-lo, além de desenvolver ações educativas e de mobilização social que possam contribuir nas medidas de controle individuais e coletivas, com impacto na melhoria das situações identificadas (Braga et al., 2011).

O benefício da presença desse profissional em voos comerciais consistiria num tripulante com sua atenção voltada completamente para a saúde e bem-estar dos passageiros, mesmo que ainda exerça atividades que envolvam a segurança da aeronave, como os outros da equipe (Schweitzer et al., 2011).

Considerando o contexto pandêmico, o ambiente da aviação traz consigo o primeiro ato a ser abandonado: a proximidade entre indivíduos. Poltronas lado a lado e pessoas com distâncias mínimas, que por sua vez respiram o mesmo ar ainda que reciclado pelo mecanismo de ar condicionado da aeronave, facilitam a transmissão de qualquer tipo de vírus respiratório como o COVID-19 em questão. (Braga et al., 2011).

Dentre as atribuições do enfermeiro na aviação comercial está a garantia da qualidade do controle de quem entra na aeronave e sua respectiva condição de saúde. Outra característica é ser referência em atendimento aos passageiros em caso de mal-estar ou qualquer outro tipo de ocorrência a bordo, uma vez que existe a possibilidade de alguém precisar de atendimento mais qualificado e que pode ser oferecido por um enfermeiro capacitado e treinado, já que o mesmo possui vivência em atendimentos aéreos. (Schweitzer et al., 2011).

O enfermeiro é habilitado para traçar não só as prioridades do paciente, mas também um plano de prevenção de incidentes que possam ocorrer. Barrar a entrada de um passageiro no avião em voo comercial por apresentar sintomas respiratórios seria uma das formas de evitar o contágio. Teoricamente, isso é algo que qualquer indivíduo consegue realizar, mas o diferencial do enfermeiro é saber fazer a leitura do corpo de forma detalhada, identificando sinais que passariam despercebidos por membros da tripulação (Braga et al., 2011).

O enfermeiro de bordo já atua no transporte de pacientes entre hospitais no Brasil por via aérea, conhecido como “transporte aeromédico”, que consiste em uma categoria de transporte de pacientes, destacando-se os casos em que o transportado esteja em estado crítico ou em situações de longas distâncias em um curto espaço de tempo (Scuissiato et al., 2012). Esta área de atuação foi iniciada em 1930 pelo piloto Laurertta M, que projetou e adaptou a profissão para outra finalidade. Em 1936, criou a Aerial Nurse Corps of America, responsável pelo treinamento dos enfermeiros em fisiologia de voo (Thomaz et al.,1999).

Cabe ao enfermeiro, devidamente treinado e capacitado, identificar o tipo de passageiro que irá transportar, levantar os equipamentos que serão utilizados para a viagem, assim como os necessários em caso de ocorrências. Essas atribuições são respaldadas pela lei nº 7.498/86, que regulamenta o exercício profissional do enfermeiro, assim como a organização e o planejamento da assistência ao transportado em estado crítico. Sendo assim, torna-se imprescindível o conhecimento dos procedimentos de segurança da aeronave, como da rotina dos voos comerciais pelos comissários de bordo, além dos cuidados com o paciente, o que torna o enfermeiro duplamente capacitado nesse tipo de cenário (Scuissiato et al., 2012).

É necessário desconstruir a visão do mundo em relação à enfermagem, por vezes vista apenas como a equipe restrita à administração de medicamentos e à realização de higiene corporal (Silva et al., 2018). Isto, de forma errônea, perpetua a visão de um profissional invisível, mistificado e rotulado rotineiramente nas imagens públicas que espelham os estereótipos de figuras angelicais, promíscuas e autoritárias, que realiza o seu trabalho aceitando as funções subordinadas que lhe são atribuídas, no entanto, excluído dos comentários fundamentados ou da análise equilibrada (Salvage, 2018).

A enfermagem é uma categoria profissional fundamental no processo de saúde, na promoção, manutenção e prevenção de doenças e agravos. A mídia tem o poder de distorcer algumas atribuições da categoria, enaltecendo o profissional médico em detrimento das atividades das outras profissões (Silva et al., 2018). Por esta razão, a presença constante do enfermeiro nos voos comerciais seria de grande valia no controle de epidemias, na identificação de evidências e na ampliação da visibilidade do enfermeiro perante a sociedade.

Dentro de cada aeronave existem dois kits de emergência, voltados para o atendimento ao passageiro ou tripulante. Um deles é o kit de primeiros socorros, que contém itens básicos não invasivos para manuseio da equipe a bordo; o outro é o kit médico, cuja abertura ocorre somente perante a presença de um médico voluntário presente, devidamente registrado no Conselho Federal de Medicina por conter materiais e medicações que necessitam de um conhecimento específico para o manuseio. Em situações de ausência deste voluntário, a maleta com medicações e materiais de atendimento não poderá ser aberta e o comissário deverá agir de acordo com o material básico que lhe é permitido pela Agência Nacional de Aviação.

Em procedimentos mais complexos seria possível o contato com um profissional médico em solo por meio do rádio existente na cabine do comandante. Desta forma, se realizaria o atendimento de acordo com a prescrição via rádio, permitida em casos de emergências, como já acontece em solo em procedimentos de emergência, onde não há um médico in loco (COREN-SE, 2000).

Colocar a maleta à disposição da equipe de enfermagem dentro das aeronaves é dar credibilidade aos profissionais que estudaram e se prepararam para o tipo de cenário que a aviação oferece. Uma vez que a caixa preta armazena as informações, tudo estaria documentado caso houvesse a necessidade de resgatar alguma informação compartilhada entre equipe terrestre e aérea.

A presença do enfermeiro a bordo possibilita uma análise e reformulação do kit de primeiros socorros, garantindo ao profissional o material necessário para o atendimento emergencial, diferente dos comissários de bordo que possuem limitação de atendimento por questões instrucionais e de respaldo pela Agência Nacional de Aviação, que permite apenas manobras não invasivas, em muitas vezes, insuficientes para a assistência. O enfermeiro é capacitado para administrar algumas medicações específicas, fazer aferição de sinais vitais e correlacionar seus resultados com possíveis agravos.

É importante ressaltar também que, além do amparo legal, o reconhecimento do papel do enfermeiro no ambiente aéreo exerceria uma contribuição de qualidade, considerando a imagem do enfermeiro, popularmente diminuída perante a sociedade, favorecendo o reconhecimento, com poder potencial de melhoria e motivação de sua assistência (Scuissiato et al., 2012).

A união dessas duas profissões, portanto, possibilitaria novos desafios para a aviação e para a enfermagem, respondendo positivamente à proposta do Nursing Now, desvelando a contribuição da enfermagem nos problemas de saúde do século XXI. Uma vez que o país foi atingido por um vírus que teve como porta de entrada a aviação é necessário repensar, junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, novas medidas de controle e segurança epidemiológica a serem aplicadas futuramente para redução dos riscos de uma nova pandemia. (All-Party Parliamentary Group On Global Health, 2018).

Considerações Finais

A aviação perdeu ao longo dos anos um personagem importante nos voos comerciais: o enfermeiro a bordo, cujas atribuições em consequência da modernização das cabines e do avanço da tecnologia ficaram restritas ao serviço de resgate e ao transporte aeromédico de pacientes já hospitalizados ou vítimas de acidentes.

A reinserção do enfermeiro na aviação comercial pode promover sua autonomia dentro de um novo campo de atuação, ressignificando seu potencial à sociedade, favorecendo a compreensão de que a cobertura universal de saúde não pode ser obtida sem a cooperação da enfermagem.

Os enfermeiros centrados onde as necessidades são maiores permitem maior potencial na obtenção de ganhos e na redução das iniquidades em saúde. Portanto, a presença do enfermeiro no atendimento aos passageiros a bordo favorece a promoção do controle epidemiológico, identificando evidências que demandem uma intervenção imediata de cuidados em saúde e controlando as condições de saúde dos passageiros que entram e saem do país e na educação permanente de comissários.

Desta forma, os enfermeiros, enquanto atores elementares nesta nova história, estarão no centro de sistemas de saúde sustentáveis que dão resposta às necessidades dos indivíduos, famílias e comunidade.

Autores: Aline Figueiredo de Araújo, Karina Melone Ferreira, Janize Silva Maia
Citação:Araújo, A.F., Ferreira, K.M., & Maia, J.S. 2021. A pandemia e os novos horizontes para o enfermeiro na aviação comercial. Pubsaúde, 5, a111. DOI: https://dx.doi.org/10.31533/pubsaude5.a111
Editor: Pubsaúde.
Recebido:  6 dez. 2020; Aceito: 16 dez. 2020; Publicado:  17 jan. 2021
Licenciamento: Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4.0), a qual permite uso irrestrito, distribuição, reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam devidamente creditados.
Disponibilidade de dados: Todos os dados relevantes estão presentes no artigo.
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver conflito de interesse.

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Referências

  • Aline Figueiredo de Araújo

  • Afiliação: Acadêmica da Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, São Paulo, Brasil.
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  • Participação:
  • Curriculo:
    Bacharel em Enfermagem pela Universidade Anhembi Morumbi (conclusão em 12/2020), Comissária de Bordo pela Escola de Aviação Civil Flight Brasil (conclusão em 07/2018), Técnica em Enfermagem no Hospital Sírio Libanês (desde 04/2019), Curso de Ingles pela escola de idiomas Wizard (conclusão em 07/2015), São Paulo (SP), Brasil.

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