Ponto de vista
Ponto de vista
Ao debruçar-se sobre os primórdios da cultura e das preconizações sobre os papéis parentais, especificamente, materno; pressupõe-se que é de direito de todo indivíduo desde o seu nascimento receber os cuidados físicos – orgânicos – psíquicos e emocionais para condições adequadas e sadias de sobrevivência e desenvolvimento humano. Porém, é apreendido e se deparado na realidade que a vida não se constitui de maneira linear e equilibrada por muitos seres humanos, quando por falhas da função materna em fornecer os significantes necessários para as simbolizações e representações indispensáveis à constituição psicoemocional em sua primeira infância; conforme se evidencia a luz dos estudos científicos e prática clínica, “ao investigar a relação do bebê com a figura materna, verificam-se indícios de desencadeamento de distúrbios psicossomáticos e de uma possível desafetação” (Simões, 2012).
Face recorrentes sentimentos de angústias e desamparo sentidos sobre as primeiras relações afetivas para a formação do psiquismo, inscritos inconscientemente na história dos sujeitos e manifestando-se no decorrer de fases posteriores de desenvolvimento humano, aqui a saída é a criação de uma estrutura diferente da neurose e da psicose na qual as palavras deixam de ter a função de ligação pulsional, e tornam-se “estruturas congeladas, esvaziadas de substância e de significação” onde o discurso, mesmo que compreensível, é completamente sem afetos. Como “Uma psique desencorpada diz respeito a um espaço mental que se assemelha a um depósito que contém um acúmulo de fatos e ações desligados das mensagens afetivas do psiquismo. As palavras, nesse caso, não têm a função de ligação pulsional e tornam-se estruturas "brancas", nulas, congeladas, posto que esvaziadas de substância e significação” (Lamanno-Adamo, 2010).
Exemplo disso, são as pulsões orais em busca de prazer; que vão insaciavelmente desejando satisfação e prazer através dos corpos “obesos – alcóolatras – drogadictos e tabagistas, etc.”; pois:
Nessa configuração mental o corpo é um corpo desmentalizado, uma máquina de alta precisão composta de órgãos que mais se assemelham a uma engrenagem constituída por chips, molas e parafusos, do que fonte indubitável de sensações e emoções. Um corpo vivido cartesianamente como mecânico e, portanto, alheio ao psíquico e que passa a substituí-lo (um corpo que come sem saber por que, o quê e o quanto está comendo, um corpo com um defeito a ser consertado) (Lamanno-Adamo, 2010).
Indivíduos que vivenciaram em tenra infância situações precoces ou danosas que foram dificultando o armazenamento das experiências como memória e a inscrição de qualidades – pensamentos e sonhos, tende-se apreender que às internalizações e simbolizações dos acontecimentos da vida vão ficando desprovidos de compreensão e de amparo. Se ocorre conflitivas entre o corpo e a psique comprometendo a capacidade de sentir – imaginar e pensar dos sujeitos, tem-se como resposta uma supressão dos afetos (libidinais e agressivos) em supremacia das vivências e ressonâncias de vazio, estado de ausência de relações e sentimento de pertencimento; contaminando e bloqueando toda a capacidade de linguagem e significação. “Uma fala que denuncia uma falência anímica (Bion, 1959), isto é, a falência em perceber objetos vivos, vistos e reais em permanente combinação e interação”.
Desamparo traduzindo falhas e faltas nas histórias dos indivíduos, como se pode entender através dos estudos de (Freud & Breuer, 1996) sobre o fenômeno das paralisias dos membros, os quais não apresentaram cura por meio de técnicas como a hipnose; quando somente através da associação livre que os sintomas puderam ser dizimados ou aniquilados, demarcando a significação da técnica, ou seja, a palavra que recupera a função de proteção contra a excitação originária na primeira infância. Assinala-se que a linguagem não seria capaz de capturar ou organizar tudo, havendo sempre o lugar do não elaborado, recorrendo para vias psicossomáticas. Nesse espaço não caberia às interpretações, mas outro instrumento clínico chamado de construção (Freud, 1996).
Contra o desamparo materno, a psicossomática é postulada como defesa em que o ego encontra saída por meio da clivagem entre corpo e mente desencadeando traumas sobre o corpo – os adoecimentos (gastrites, enxaquecas, psoríases, dermatites de pele, etc., que a mente ainda não conseguiu lidar; conforme um estudo sobre “O estresse ocupacional auto atribuído em mulheres policiais militares da cidade do Rio de Janeiro”, por Bezerra (2013) a evidência sobre o que ganhou linguagem através dos sintomas psicossomáticos, como: sentimento de ansiedade, compulsões alimentares, atitudes repetidas e o consumo de café em excesso, a enxaqueca, queda de cabelo, psoríase, herpes e menstruação desregulada, medo e ansiedade geradas pelo temor de serem reconhecidas pela função.
Em consequência dessa falta de vinculação da linguagem com seu sentido simbólico, surge a nomenclatura sobre a desafetação:
McDougall (1983) forjou a noção de desafetação para fazer referência a um distúrbio da economia afetiva, típico de pacientes somáticos, após perceber que muitos deles apresentam uma incapacidade quase total de manter contato com as emoções próprias e alheias. As palavras, assim, ficam desvinculadas de seu sentido simbólico, ligando-se, como consequência, à concretude. A autora esclarece que isso ocorre, essencialmente, porque esses indivíduos vivenciaram precocemente emoções de grande poder disruptivo, as quais expulsaram defensivamente do campo da consciência (apud Clemente & Peres, 2010).
Tais dificuldades em compreender, identificar e nomear as significações afetivas em termos de pensamentos, sentimentos, vivências e relações contribuem para vínculos afetivos sentidos como inseguros e com temores (conscientes ou inconscientes) da precariedade de pertencimento; o que pode provocar entre as pulsões de vida e morte inerente as travessias da vida – uma tentativa simbiótica e desprotetora dos anos iniciais de vida em que se prevalecia o desamparo e a precisão do outro. McDougall (1991) defende que ao profissional impor-se-á o desafio de funcionar como um filtro – sendo capaz de regular o afluxo de excitações do qual o paciente somático tende a se livrar apelando à descarga corporal, por não ter acesso às palavras que poderiam torná-lo dizível.
Assim, alguns contextos dessa dialética da vida cotidiana demarcando as demandas de um mundo carregado de contemporaneidade e busca incessante de desejos amorosos através das frestas subjetivas da emocionalidade, como; faltas psicoemocionais relacionadas às carências de atenção – amparo – pertencimento – segurança e significado nas vinculações da vida, também reveladas nas películas dos processos iniciais de psicoterapia clínica; por meio das queixas sobre os desamparos relacionados às “pulsões e fomes” sentidas por um pouco mais de reconhecimento – consideração – particularidade – sonoridade – nutrição – afeição – significado e vinculação.
Diante disso, McDougall (1996) salienta que nos estados psicossomáticos o corpo se comporta de maneira delirante, é como se o corpo “enlouquecesse”. Nesse sentido, as manifestações aparentes na pele não podem ser disfarçadas, como acontece o disfarce por meio da expressão. Sendo assim, os registros de experiências vividas são colocados como cicatrizes e/ou lesões de uma doença que marca o espaço de uma ferida física e psíquica, tomando a pessoa em uma totalidade psicossomática (apud Botelho, 2020, p. 06).
Portanto, face os avanços científicos e tecnológicos provocando novas formas de comunicação e relacionamentos interpessoais, bem como consequente; desorientação e conflitivas relacionadas aos interesses – investimentos e atenções dispensadas sobre o lema do viver; os discursos e comportamentos poliqueixosos sobre as faltas – fomes – desamparos – desafetação buscam desenfreadamente os consultórios medicos, em prejuízo da real e urgente travessia para a busca das psicoterapias que versem sobre as conexões mente e corpo e soma. Não será essa a travessia urgente, buscando cambio e sonoridade entre essas dimensões tão próprias da condição humana? Primando-se por uma escolha significativa: se permitir se reaver com a própria história da matriz original chamada infância, e amorosamente se reconectar e vincular de forma amorosa com esse “louco e poético” dilema chamado viver como um ser merecedor de um lugar de fala.
Sou Gema Galgani – professora, psicoterapeuta e eterna aprendiz…
Palavras-chave: desamparo, morte, privação materna, vias clínicas, vinculação, vida.
Keywords: helplessness, death, maternal deprivation, clinical pathways, binding, life.